quarta-feira, 25 de março de 2009

Água Perrier

Hoje resolvi que tentaria entender a linguagem secreta das suas palavras.
A mim, sempre me pareceu, que ele vivia com um medo seu, congênito, do qual tirava força. Era uma presença incomoda desconcertante que sempre criava uma atmosfera de inquietação. Reagia a isso, com ansiedade crescente, que manifestava sob a forma de fulgurações narcisistas, intervenções inoportunas e enfrentamentos desproporcionais.
Na primeira vez que o vi, estava sentado num canto de parede, com um olhar blasé, no meio de uma festa, em que todos pareciam ter sido agarrados por um transe de felicidade. Sempre gostei de olhares blasés. Amei o profundamente nesse dia. Na sua camisa a estampa: fuck me now, love me later, mas suas retinas me diziam exatamente o oposto. Naquele momento me deixei enganar por seu descompasso com o resto da festa. Achei que aquilo era um ato voluntário de não querer participar daquele ambiente tão desinteressante. Não sabia que na verdade o que ele mais queria era fazer parte dessa roda que girava, mas que o tinha cuspido. Nunca gostei de pessoas muito planas. Aquelas pessoas que sempre estão felizes me parecem viver assim apenas por preguiça ou excesso de autocomplacência. Ele, não. Tinha algo de lindo e aniquilante.
Hoje, tentarei ver além do que essa forma insegura jamais me mostrou.
Não nos falamos ainda no dia daquela festa. Guardei daquela noite apenas essa impressão difusa que talvez se perdesse nos recônditos do meu inconsciente se ele não viesse atrás de mim. Chegou e me mostrou sua dor tão intensa e nua que não tive como não ser atingido por ela. Ele vivia assim em carne viva.
Tinha uma agenda com uma frase de Camille Claudel numa carta a Rodin. Talvez fosse a única finalidade para a qual destinasse a agenda. Não era do tipo que tivesse qualquer relação programada com a vida. Mas não era uma frase qualquer.

“Il a toujours
Quelque chose d’absente
Qui me tourmente”

Eu o amei ainda mais nesse dia.
Ele já fora considerado um dos melhores exemplares de sua época. Foi uma das primeiras coisas que me disse quando se aproximou de mim. Não era lindo, mas tinha uma beleza média que juntamente com outros atributos que ele não fez questão de me esconder, me fez parecer que aquilo fosse possível. Falava francês. Sempre achei sexy os falantes de francês com seus biquinhos e erres rascantes.
Depois de algum tempo sua presença absorvente e cansativa começou a me desestabilizar. Tudo precisava viver ao seu redor dele e da sua doença. Sei que não deve ser fácil, viver assim, com todos sabendo dos seus problemas. Mas parecia-me que ele tinha uma capacidade de percepção especialmente voltada para perceber uma tragicidade em tudo na vida e sofrer desmesuradamente com isso. Era um doce vampiro, perito em roubar a luz alheia. Sua boca aberta se lamentava ao mundo.
Suas amigas eram insuportáveis com seus risinhos pósmodernistas cheias de minicertezas e de verdades perfeitas. Era claro o fracasso dele refletido no rosto de cada um de seus poucos amigos e comecei a evitar aquelas presenças desagradáveis.
Depois, ele começou a me tratar com uma certa frieza como se tivesse acabado o encanto. Parecia que me desprezava ou talvez fosse eu próprio quem me desprezasse diante dos seus olhos. Não sei, mas parecia obvio que se mantinha ligado a mim por uma carência absurda e por um medo que o imobilizava e o deixava patinando em sua dor. Decidi deixá-lo quando ele começou a querer alimentar em mim a minha dor.
Ontem, entrei no meu MSN como de costume e todos estavam on line mas também como de costume, para mim eram todos invisíveis. Olhei minha caixa de mensagens e lá estava um email dele. Por uns segundos pensei em apagar sem nem mesmo lê-lo, mas como sempre minha curiosidade me impediu de fazer isso. Na mensagem ele dizia:
“Agora é a hora. Não existe outra. As coisas não são mais adiáveis. Tenho uma porção de coisas para te dizer, dessas coisas assim que não se dizem costumeiramente. Essas coisas, que de tão difíceis de serem ditas geralmente ficam caladas, porque nunca se sabe nem como serão ditas nem como serão ouvidas. Te espero em minha casa amanhã. É meu último pedido.”
O email me desconcertou de uma forma que achei que ele não fosse mais capaz. The dream was over. What can I say? O que mais ele poderia querer? Não sou do tipo que gosta de flashbacks. Essa noite não dormi. Pensei com alguma lucidez em ligar para uma amiga e tentar racionalizar a situação, mas desisti por que já sabia sua opinião sobre ele. Aliás, todos meus amigos eram unânimes. Ele era daquele tipo de pessoa como um jogo de poker, sabe? Você deve sair antes que tenha perdido tudo. Meu ensaio de lucidez durou pouco e decidi encontrá-lo
Levantei da cama depois de perceber que não pregaria os olhos. Fui ao seu encontro e à medida que caminhava fui sendo tomado por um sentimento aniquilador de culpa. Decidi que tentaria então olhá-lo por trás dessa máscara sólida e arrasadora que eu havia colocado diante do seu rosto. No meio do caminho, em um daqueles acasos que às vezes me levam a crer na existência de uma ordem maior que rege as coisas, sintonizei meu ipod na música que tocava no seu carro quando fizemos sexo pela primeira vez e acabou se tornado nossa música. Agua Perrier de Adriana Calcanhoto. Aquilo me desarmou e me devolveu a um estado de mim mesmo que eu achava que havia se dissolvido pela própria natureza de ser fumaça. Amei-o como nunca neste instante. Decidi que não diria nada. Apenas entraria no quarto, o tomaria nos meus braços, o colocaria debaixo de minhas ancas e cuidaria dele como uma ama portuguesa.
Cheguei ao prédio e subi o elevador. De repente me veio na cabeça a idéia de que ele podia ter se matado. Afinal, porque depois de tanto tempo uma mensagem assim tão estranha? Cada segundo naquele elevador se tornava mais asfixiante e quando parei no andar dele parecia que ia vomitar. Andei pelo corredor e vi que a porta estava entreaberta. Ouvi de fora da casa sua voz e ele falava pelo telefone.
Encomendava flores e comida japonesa para o almoço que provavelmente seriam para mim. Ele sabia que eu adorava lírios e temakis. Sim, eu era como um daqueles adolescentes devoradores de temakis que tinham aderido à moda quase que onipresente. Ele devia estar prevendo que eu só chegaria para o almoço. Com minha obsessão pela ordem era fácil de ser antecipado.
Não, nada havia mudado. Eu sabia que se cruzasse aquela porta voltaria para um mundo de dor e desintegração psicológica que não suportaria. Toquei o elevador para fugir e ele não chegava. Ouvi passos vindos da casa e corri para a escada com medo de ser flagrado. Esperei na rua em frente até que chegasse o carro com as flores e depois o carro com o temaki. Esperei o rapaz que deposita o lixo do prédio descer provalvemente com o temaki e as flores no lixo. Esperei o caminhão de lixo recolher das latas aquilo que poderia ter sido a concretização do nosso retorno. Esperei. Esperei. Como tinha sido durante toda nossa vida juntos esperei por algo que nunca viria. Só que dessa vez estava de fora e doía tanto quanto de dentro. Peguei no sono e ouvi um estrondo absurdo e gritos na rua. Sai do carro com dificuldade por ter ficado tanto tempo parado. No chão estava aquele corpo que tanto amei desfigurado pela queda de doze andares. Amei-o dessa vez e não deixei mais de amá-lo por um segundo que fosse em minha vida.

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