terça-feira, 31 de março de 2009

Vejo aquele rosto familiar saindo do trabalho. Parece-me que nada nele mudou. Vejo-o caminhar em direção ao meu carro e entrar. Não sei se o cumprimento como amigo ou como amante. Pergunto se ele estava com a maconha prometida com uma voz engasgada pela timidez. Lógico que não estaria com ele. Ele não estaria no trabalho com a droga. Ele já deve estar acostumado com minhas perguntas tolas que sempre surgem quando não sei bem o que dizer. Só que na hora não penso nisso. Sinto-me apenas mais e mais tolo. Chegamos a minha casa e até a intimidade ser novamente restaurada precisamos passar por quase uma hora de conversas triviais em que não nos entendemos muito bem, entorpecidos que estávamos da maconha. Tropeço nas palavras e nas idéias e me sinto cada vez mais idiota. A cada instante que falo de mim mostro a fragilidade de minha construção de vida, minha fraqueza e inaptidão para a vida prática. Percebo que as construções dele são igualmente ou mais frágeis, mas nem assim consigo me sentir melhor. Estou tão tenso que não consigo desejá-lo. Masturbo-me todos os dias pensando nele e agora que o tenho ao alcance do meu beijo não consigo sentir nada. Ele então se deita ao meu lado e começa a aproximar o corpo do meu. O membro em febre. O cheiro inconfundível. Eu já tenho a resposta na ponta da língua para sair daquela situação quando chegar o momento: Eu quero muito, mas acho que isso não vai ser bom para nossa relação. Assim, pela primeira vez agiria com um pouco de lucidez. Depois de alguns minutos com os corpos quase se tocando e sua respiração cada vez mais próxima, deixo-me vencer e acaba meu ensaio de lucidez.
Fizemos sexo. Como sempre. Nunca resistia ao desejo que sentia por ele. Ele dizia que aquilo era só uma tara minha, mas nós dois sabíamos que era muito mais.
Eu queria que ele me emprestasse seu peito por aquela madrugada e me consolasse. Estávamos sóbrios quando ele pegou no meu pau. Por maior esforço que fizesse, não conseguia me lembrar da última vez que tivesse feito sexo sóbrio. Nesse dia só fumamos maconha que não me tira da "real". O fato de não estar sobre o efeito de lubrificante social do álcool me impediu de fazer as constatações que devia. Ele sempre vinha com aquele papo de que o que a gente fazia não estava certo. Fuder com outro cara tendo namorado é coisa de quem não ama e não tem coragem de assumir isso. Puta que pariu! Quando ele entenderia que temporalidades diferentes podiam conviver juntas? O que fazer com quem não vivia na temporalidade da monogamia? Porra! Sou amativo antes de tudo! O mundo que me condena. Mas ele me condenando doía mais. A tradição não passa do particular que se tornou hegemônico.
Naquele dia eu tinha acordado com decisões definitivas. Fui me arrumar e ao colocar distraidamente as roupas de baixo deixei as decisões junto com as roupas de dormir. Sobrou um pouco de enjôo do suco que o empregado insistia em fazer no liquidificador de temperos.
Sai de casa prestando atenção sem querer nas pessoas que caminhavam na rua. Um tipo de pessoa sempre me chama atenção. Aqueles que correm com pressa sem ter pressa de fato, como se o tempo não lhes fosse precioso. Quantas vezes eu também perco tanto tempo remoendo pequenos problemas? Às vezes tenho a impressão de que tudo sobra em mim e ao mesmo tempo não há nada. Quanto tempo perco dando essas explicações? Sou assim. Complexo, desconexo, contraditório e inseguro. É demais? Talvez! Quem quiser que pule fora.

domingo, 29 de março de 2009

Mais uma paixão. Como saber se ele será importante para mim ou se já sou descartável para ele. Paixões gestadas na internet, construídas com corpos-palavras. Palavras que adquirem poderes por esta nova condição. Cada espaço em branco, cada espera interminável para se obter uma resposta. As relações são fluidas e rompidas com a facilidade com que se deleta um contato do MSN. Amores abortados antes de serem concretizados. Para mim nunca funcionou assim. Acredito que ninguém vive uma paixão impunemente. Quando acaba, sempre existe alguém que ainda deseja. É sempre doloroso. Escondo-me dentro de minha redoma de vidro buscando me proteger. Não consigo mais acreditar no amor, apesar de ainda não conseguir viver sem ele. Uma terceira perna que me fornece um falso equilíbrio, mas que não consigo dispensá-la. Perdi minha inocência e não sei se a quero de volta. Sinto-me completamente só rodeado apenas por amores fluidos. Preciso me curar. Nunca acreditei que ninguém se curasse verdadeiramente de nada. Não dessas doenças do amor. Preciso dormir, mas nada me abandona. Nem a mim nem ao meu sono. Amanhã quem sabe.

quarta-feira, 25 de março de 2009

crônica irremediável

Reconheço-me em cada rosto servil que vejo. Rosto de quem é constantemente esmagado por uma completa inabilidade social. Nos outros reparam sempre no sexo ou no corpo musculoso. Em mim sempre olham para o meu defeito. A cada dia que passa minhas patas e antenas ganham substância. Minha metamorfose para uma barata como a de Kafka é lenta e dolorosa. Sinto cada fibra muscular humana que se rompe com uma explosão de dor dar lugar a cartilagem de inseto. Isolo-me dentro de minha redoma de vidro, onde minha dor é crônica e arrasadoramante suportável. O ar do mundo dos que vivem e se arriscam me parece demasiadamente sufocante. Sinto-me fora de uma roda que gira e me cuspiu desde que minhas primeiras máscaras se mostraram inadequadas. Quero me sentir parte de algo. Quero que meu grito seja ouvido. Alimento minha dor com essa egotrip que aqui escrevo e me engano com a sensação de isso me fará ser ouvido. Único consolo possível para quem abdicou de sonhar. Tenho nos olhos a desilusão daqueles que não esperam mais nada de nada nem de ninguém. Falo sobre coisas que ninguém quer ouvir. Todas as possibilidades de expressão me foram negadas. Todas as máscaras que escolhi não funcionam e soam por demasiado frouxas. O intelectual, o pobre menino rico, o revolucionário. Tentei em cada uma delas encontrar um eu que pudesse ser amado. Um pequeno monstro a procura de amor incondicional. O que acontece com pessoas como eu? Morrem sem deixar falta. Só que o pior não é isso. O pior é o caminho até essa morte.

Água Perrier

Hoje resolvi que tentaria entender a linguagem secreta das suas palavras.
A mim, sempre me pareceu, que ele vivia com um medo seu, congênito, do qual tirava força. Era uma presença incomoda desconcertante que sempre criava uma atmosfera de inquietação. Reagia a isso, com ansiedade crescente, que manifestava sob a forma de fulgurações narcisistas, intervenções inoportunas e enfrentamentos desproporcionais.
Na primeira vez que o vi, estava sentado num canto de parede, com um olhar blasé, no meio de uma festa, em que todos pareciam ter sido agarrados por um transe de felicidade. Sempre gostei de olhares blasés. Amei o profundamente nesse dia. Na sua camisa a estampa: fuck me now, love me later, mas suas retinas me diziam exatamente o oposto. Naquele momento me deixei enganar por seu descompasso com o resto da festa. Achei que aquilo era um ato voluntário de não querer participar daquele ambiente tão desinteressante. Não sabia que na verdade o que ele mais queria era fazer parte dessa roda que girava, mas que o tinha cuspido. Nunca gostei de pessoas muito planas. Aquelas pessoas que sempre estão felizes me parecem viver assim apenas por preguiça ou excesso de autocomplacência. Ele, não. Tinha algo de lindo e aniquilante.
Hoje, tentarei ver além do que essa forma insegura jamais me mostrou.
Não nos falamos ainda no dia daquela festa. Guardei daquela noite apenas essa impressão difusa que talvez se perdesse nos recônditos do meu inconsciente se ele não viesse atrás de mim. Chegou e me mostrou sua dor tão intensa e nua que não tive como não ser atingido por ela. Ele vivia assim em carne viva.
Tinha uma agenda com uma frase de Camille Claudel numa carta a Rodin. Talvez fosse a única finalidade para a qual destinasse a agenda. Não era do tipo que tivesse qualquer relação programada com a vida. Mas não era uma frase qualquer.

“Il a toujours
Quelque chose d’absente
Qui me tourmente”

Eu o amei ainda mais nesse dia.
Ele já fora considerado um dos melhores exemplares de sua época. Foi uma das primeiras coisas que me disse quando se aproximou de mim. Não era lindo, mas tinha uma beleza média que juntamente com outros atributos que ele não fez questão de me esconder, me fez parecer que aquilo fosse possível. Falava francês. Sempre achei sexy os falantes de francês com seus biquinhos e erres rascantes.
Depois de algum tempo sua presença absorvente e cansativa começou a me desestabilizar. Tudo precisava viver ao seu redor dele e da sua doença. Sei que não deve ser fácil, viver assim, com todos sabendo dos seus problemas. Mas parecia-me que ele tinha uma capacidade de percepção especialmente voltada para perceber uma tragicidade em tudo na vida e sofrer desmesuradamente com isso. Era um doce vampiro, perito em roubar a luz alheia. Sua boca aberta se lamentava ao mundo.
Suas amigas eram insuportáveis com seus risinhos pósmodernistas cheias de minicertezas e de verdades perfeitas. Era claro o fracasso dele refletido no rosto de cada um de seus poucos amigos e comecei a evitar aquelas presenças desagradáveis.
Depois, ele começou a me tratar com uma certa frieza como se tivesse acabado o encanto. Parecia que me desprezava ou talvez fosse eu próprio quem me desprezasse diante dos seus olhos. Não sei, mas parecia obvio que se mantinha ligado a mim por uma carência absurda e por um medo que o imobilizava e o deixava patinando em sua dor. Decidi deixá-lo quando ele começou a querer alimentar em mim a minha dor.
Ontem, entrei no meu MSN como de costume e todos estavam on line mas também como de costume, para mim eram todos invisíveis. Olhei minha caixa de mensagens e lá estava um email dele. Por uns segundos pensei em apagar sem nem mesmo lê-lo, mas como sempre minha curiosidade me impediu de fazer isso. Na mensagem ele dizia:
“Agora é a hora. Não existe outra. As coisas não são mais adiáveis. Tenho uma porção de coisas para te dizer, dessas coisas assim que não se dizem costumeiramente. Essas coisas, que de tão difíceis de serem ditas geralmente ficam caladas, porque nunca se sabe nem como serão ditas nem como serão ouvidas. Te espero em minha casa amanhã. É meu último pedido.”
O email me desconcertou de uma forma que achei que ele não fosse mais capaz. The dream was over. What can I say? O que mais ele poderia querer? Não sou do tipo que gosta de flashbacks. Essa noite não dormi. Pensei com alguma lucidez em ligar para uma amiga e tentar racionalizar a situação, mas desisti por que já sabia sua opinião sobre ele. Aliás, todos meus amigos eram unânimes. Ele era daquele tipo de pessoa como um jogo de poker, sabe? Você deve sair antes que tenha perdido tudo. Meu ensaio de lucidez durou pouco e decidi encontrá-lo
Levantei da cama depois de perceber que não pregaria os olhos. Fui ao seu encontro e à medida que caminhava fui sendo tomado por um sentimento aniquilador de culpa. Decidi que tentaria então olhá-lo por trás dessa máscara sólida e arrasadora que eu havia colocado diante do seu rosto. No meio do caminho, em um daqueles acasos que às vezes me levam a crer na existência de uma ordem maior que rege as coisas, sintonizei meu ipod na música que tocava no seu carro quando fizemos sexo pela primeira vez e acabou se tornado nossa música. Agua Perrier de Adriana Calcanhoto. Aquilo me desarmou e me devolveu a um estado de mim mesmo que eu achava que havia se dissolvido pela própria natureza de ser fumaça. Amei-o como nunca neste instante. Decidi que não diria nada. Apenas entraria no quarto, o tomaria nos meus braços, o colocaria debaixo de minhas ancas e cuidaria dele como uma ama portuguesa.
Cheguei ao prédio e subi o elevador. De repente me veio na cabeça a idéia de que ele podia ter se matado. Afinal, porque depois de tanto tempo uma mensagem assim tão estranha? Cada segundo naquele elevador se tornava mais asfixiante e quando parei no andar dele parecia que ia vomitar. Andei pelo corredor e vi que a porta estava entreaberta. Ouvi de fora da casa sua voz e ele falava pelo telefone.
Encomendava flores e comida japonesa para o almoço que provavelmente seriam para mim. Ele sabia que eu adorava lírios e temakis. Sim, eu era como um daqueles adolescentes devoradores de temakis que tinham aderido à moda quase que onipresente. Ele devia estar prevendo que eu só chegaria para o almoço. Com minha obsessão pela ordem era fácil de ser antecipado.
Não, nada havia mudado. Eu sabia que se cruzasse aquela porta voltaria para um mundo de dor e desintegração psicológica que não suportaria. Toquei o elevador para fugir e ele não chegava. Ouvi passos vindos da casa e corri para a escada com medo de ser flagrado. Esperei na rua em frente até que chegasse o carro com as flores e depois o carro com o temaki. Esperei o rapaz que deposita o lixo do prédio descer provalvemente com o temaki e as flores no lixo. Esperei o caminhão de lixo recolher das latas aquilo que poderia ter sido a concretização do nosso retorno. Esperei. Esperei. Como tinha sido durante toda nossa vida juntos esperei por algo que nunca viria. Só que dessa vez estava de fora e doía tanto quanto de dentro. Peguei no sono e ouvi um estrondo absurdo e gritos na rua. Sai do carro com dificuldade por ter ficado tanto tempo parado. No chão estava aquele corpo que tanto amei desfigurado pela queda de doze andares. Amei-o dessa vez e não deixei mais de amá-lo por um segundo que fosse em minha vida.